Opinião: A (in)aplicabilidade da teoria da imprevisão nos contratos de locação

Utilizando como analogia o contrato social, por meio do qual se estabelecem vínculos de deveres e obrigações entre o Estado e a Sociedade, podemos notar ao longo dos séculos a utilização do controle jurisdicional, por meio das regras e normas que regeram a harmonia social, como exemplo o Código de Hamurabi.

Essa codificação, mesmo sendo lembrada nos dias atuais incisivamente pelo seu caráter “bárbaro”, veiculava “fatos atuais”, utilizando-se da teoria da imprevisão, pois em alguns casos estava expresso o dever de agir sob o seguinte regramento:

“Se alguém tiver um débito de empréstimo e uma tempestade prostrar os grãos ou a colheita for ruim, ou os grãos não crescerem por falta d’água, naquele ano a pessoa não precisa dar ao seu credor dinheiro algum. Ele deve lavar sua tábua de débito na água e não pagar aluguel naquele ano”.

Observamos que, apesar das questões fatídicas, em que a punição na quase na maioria dos casos era a morte, notamos os primórdios da teoria da imprevisão, com norma que descreve a aplicabilidade razoável e proporcional dos princípios da imprevisão em face do credor.

Para entendimento do instituto “contrato”, devemos observar parâmetros sociais, visto a existência de obrigações durante o passar do tempo. Neste sentido, indo ao encontro da essência do sociólogo Emille Durkhein, os contratos são fundamentais para uma sociedade, visto que cada indivíduo possui personalidades distintas, e se caso não fosse assim, o indivíduo estaria próximo a um animal, sempre tomando e perdendo algo para o outro humano.

A obrigação contratual
O princípio da obrigatoriedade dos contratos, que faz regra entre as partes, é amplamente conhecido, pois estabelece os deveres e obrigações inerentes às modalidades contratuais. Tomando forma com o Renascimento, por volta de 1500, quando do crescente contato entre sociedades diversas, durante as grandes navegações.

Nesse sentido, o princípio da obrigatoriedade dos contratos, que deriva da máxima pacta sunt servanda, impõe às partes o cumprimento da obrigação ou adimplemento, que, conforme Carlos Roberto Gonçalves, fundamenta-se nos seguintes termos:

“À necessidade de segurança nos negócios, que deixaria de existir se os contratantes pudessem não cumprir com a palavra empenhada, gerando a balbúrdia e o caos; b) a intangibilidade ou imutabilidade do contrato, decorrente da convicção de que o acordo de vontade faz lei entre as partes, personificada pela máxima pacta sunt servanda (os pactos devem ser cumpridos), não podendo ser alterado nem pelo juiz” (GONÇALVES, 2012, p. 49).

Tal princípio é um dos pilares essenciais para manter a segurança jurídica, protegendo as partes e seus atos, até a finalíssima contratual, ou seja, o Direito e, em especial, o direito das obrigações, impondo deveres de conduta. Tais deveres resultam de uma obrigação geral de conduta segundo o Direito e os bons costumes ou de obrigações voluntariamente contraídas, emanadas de contratos. Há situações em que a existência de um contrato resulta bem clara: na compra e venda, no mútuo, na locação, por exemplo, ficam bem caracterizados os direitos e deveres do comprador e vendedor, mutuante e mutuário, locador e locatário.

O Código Civil de 2002 estabeleceu a função social como princípio público emergente, diferentemente do anterior Código Civil (Beviláqua), que prioriza o individualismo e o hereditário. Com a promulgação da Constituição Federal em 1988, devido às crescentes exigências do Estado sobre o direito privado, a eterna dicotomia entre direito público e direito privado quase não existe mais.

Portanto, cumulando o entendimento supra, com o princípio da socialidade, que reflete a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, sem a perda dos valores fundamentais da pessoa humana, buscando a origem e o escopo que se pretende buscar com a inclusão da socialidade e, em especial, da exaltação da função social no Código Civil atual, deve-se observar parâmetros de equilíbrio contratual, para não prejudicar terceiros (sociedade) nas relações firmadas.

Do contrato de locação na atualidade
O método locatício está estipulado tanto em leis esparsas, quando disposto no ordenamento civil, visto que na codificação cível está entre os artigos 565 a 578, corroborando com a Lei 8.245/91, que regulamenta as regras dos imóveis urbanos residenciais e comerciais. Neste sentido, os doutrinadores e juristas, ao longo dos séculos, estudam tais formas contratuais para desvendar seu passado e influenciar o devir.

Vislumbrando o entendimento do doutrinador Carlos Roberto Gonçalves, a locação de coisas é uma forma de modalidade contratual, em que uma das partes da relação jurídica denominada locador ou senhoria se compromete (se obriga com a outra parte, chamada locatário ou inquilino), permitindo assim que usufrua e goze de uma coisa não fungível, por tempo determinado e mediante contraprestação pecuniária. Igualmente prevê o artigo 565 do Código Civil de 2002, que dispõe da cessão da coisa à outra, por tempo determinado ou não, mediante certa retribuição lícita.

Nesse diapasão, é fulcral observar o período vivido, pois em um mundo globalizado tudo se encontra conectado; assim, as questões que envolvem os contratos de locação, regidos por lei específica, devem ser observados com cautela, pois apresentam, na maioria dos casos, questões fundamentais à dignidade da pessoa humana

A teoria da imprevisão nos contratos de locação
Nos casos de uma mudança superveniente, ou seja, não prevista contratualmente, devem ser regidos por princípios basilares, conforme explanado em tópicos supra, para prover uma maior resolução, sem ir de encontro a direitos fundamentais do indivíduo, devendo ser estabelecidos parâmetros para a utilização da Teoria da Imprevisão.

Nesse sentido, observando fatos históricos, há tempos em que a teoria da imprevisão vem sendo utilizada, especificamente no pós-guerra, visto que, no final das contas, os conflitos ocasionados na Primeira Guerra Mundial geraram um significativo desequilíbrio nos contratos existentes, bem como nos futuros, de longo prazo. Então, notou-se que o pacta sunt servanda, que compunha um direito absoluto, deveria ser repensado.

Questões pertinentes, que vieram à luz em 21 de janeiro de 1918, na França, onde eclodiu a Lei Failliot, a qual autorizou a resolução dos contratos concluídos antes da guerra porque sua execução se tornaria muito onerosa. 

A doutrina descreve como a base legal para a aplicabilidade da Teoria da Imprevisãoconsistente no reconhecimento de que a ocorrência de acontecimentos novos, imprevisíveis pelas partes e a elas não imputáveis, com impacto sobre a base econômica ou a execução do contrato, admitiria a sua resolução ou revisão, para ajustá-lo às circunstâncias supervenientes.

A obrigatoriedade do contrato forma o sustentáculo do direito contratual, sem essa força obrigatória a sociedade estaria fadada ao caos. Embora tenha que se tomar a afirmação com o devido cuidado, o contrato estabelece uma lei entre as partes. Essa força legal do contrato é sentida pelos participantes do negócio de forma mais concreta do que a própria lei, porque lhes regula relações muito mais próximas. (Venosa, Direito Civil: Contratos. volume 3 págs. 122).

No entanto, em situações excepcionais, a doutrina e a jurisprudência das últimas décadas têm admitido uma revisão das condições dos contratos por força de uma intervenção judicial. A sentença substitui, no caso concreto, a vontade de um dos contratantes. Essa revisão pode ocorrer, é fato, por via oblíqua, quando se reconhece o abuso de direito (Venosa, Direito civil: parte geral, capítulo 30), ou o enriquecimento sem causa (Direito Civil: Obrigações e Responsabilidade Civil, capítulo 9). No abuso de direito, podemos paralisar o cumprimento de um contrato, porque há desvio do fim social e econômico para o qual foi criado, sob a falsa aparência da legalidade.

Para uns, fundamenta-se na pressuposição: os fenômenos sociais posicionam-se dentro das situações em que os contratos foram ultimados. A vontade contratual, em síntese, não pressupôs o acontecimento inesperado que desequilibrou o contrato. Outros entendem que todo contrato possui uma condição implícita de permanência de uma realidade, cuja modificação substancial autoriza a supressão dos efeitos por ela causados.

Outras correntes, partem pelo princípio da reciprocidade ou equivalência das condições, nos contratos bilaterais, ou unilaterais onerosos, deve existir certo equilíbrio nas prestações dos contratantes, desde o momento da estipulação até o momento de seu cumprimento. (Venosa, Direito Civil: Contratos. volume 3 págs. 122).

O que se depreende é que a liberdade desregrada para se contratar, a autonomia da liberdade fomentando a autorregulação — com a figura do Estado à margem da relação entre as partes — acarretou numa dinâmica em que a manutenção das convenções passou a não mais ser vista e, acima de tudo, criou-se um ambiente em que o individualismo é a base de todos os enlaces, transformando a ideia da função social do contrato em um mero devaneio ou em uma frase feita para ensaios e palestras.

A rigor, com as maquinações que se perfizeram, com as uniões de grandes corporações, com os contratos firmados a partir de um consensualismo desmedido e que regula apenas os interesses mais íntimos dos contraentes, gerou-se um sistema distante da lógica de uma função social e que solapa o ideário do bem coletivo.

A autonomia da vontade é um ingrediente que deve expressar a manifestação do querer dos agentes, porém, pelo modo como ela se insere socialmente, há o olhar para o atendimento de um interesse que contempla o interesse das partes, mas que faz adoecer o sistema econômico e, por consequência, o contratual vigente. (Guilherme, Luiz Fernando do Vale de Almeida, Função Social do contrato e contrato social análise da crise econômica, página 211).

Conclusões e recomendações
A cláusula rebus sic standibus, resgatada sob a estrutura científica da Teoria da Imprevisão, tornou-se um verdadeiro amortecedor do princípio da autonomia da vontade, retirando o pacta sunt servanda de sua intangibilidade e fazendo com que a doutrina, a jurisprudência e o legislador do Código Civil de 2002 passassem a dispensar tratamento especial à pessoa — sua dignidade e socialidade em lugar da vontade soberana individualista que imperava.

No presente estudo, foram levantadas questões supervenientes de alterabilidade contratual causadas pela perceptível mudança das economias mundiais, causadas pela pandemia de Covid-19, que, consequentemente, dificultou a estabilidade dos negócios jurídicos pactuados, visto a não previsão contratual para o período vivenciado.

Desse modo, é fulcral a observância da esfera judiciária, baseando-se nos princípios basilares do ordenamento jurídico, utilizando-se como analogia casos concretos, em que são presentes tais arguições, visto se tratar de consequências que vão além do simples papel, e transcendem ao núcleo familiar, atingindo também o estado anímico dos indivíduos, visto a instabilidade econômica.

Escrito por: Lucas Santos Martins, graduando de Direito no Centro Universitário UNA de Uberlândia e Paula Kethelyn Felicio Ribeiro, graduanda em Direito no Centro Universitário UNA de Uberlândia (MG) e estagiária no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJ-MG).

Fonte: Consultor Jurídico, 16 de junho de 2021, 6h31

 

Comentários do Jurídico do Secovi/RS

“O artigo retrata a instabilidade econômica em que estamos vivendo, alertando seja utilizada a Teoria da Imprevisão, para se contratar com segurança jurídica e equilíbrio.

Importante que os contratos contemplem cláusulas relacionadas a eventos imprevisíveis e extraordinários, para que, se precisar passar por uma instabilidade econômica, a exemplo da Pandemia, juridicamente o contrato estará bem amparado por todos os seus termos e condições ali pactuadas, mesmo porque, antigamente, essa alternativa também era utilizada, motivo pelo qual aponta o Código de Hamurabi. Mas vejamos o que traz o artigo.

Primeiramente, partindo do princípio de que o contrato estabelece lei entre as partes, esse artigo apresenta a alternativa de desfazimento ou de reavaliação forçada dos contratos, quando a prestação de uma das partes tornar-se exageradamente onerosa, em razão de eventos imprevisíveis e extraordinários. Essa situação é viabilizada pela aplicação da cláusula rebus sic stantibus, expressão em Latim que significa “estando as coisas assim” ou “enquanto as coisas estão assim”.

Os autores ressaltam a necessidade de haver equilíbrio contratual, como forma de se estabelecer segurança jurídica aos contratantes, pois se houver acontecimentos que possam desequilibrar o pacto, como a Pandemia do COVID-19, é possível a revisão das condições dos contratos, por força de uma intervenção judicial. E, essa revisão também abarca os contratos de locação, quando se reconhecer o abuso de direito, ou o enriquecimento sem causa, mesmo estando regido por lei específica.

Mais ao final do artigo os autores citam esse posicionamento, também por parte de renomados Juristas, de que a revisão pode ocorrer […], quando se reconhece o abuso de direito, ou o enriquecimento sem causa. No abuso de direito, podemos paralisar o cumprimento de um contrato, porque há desvio do fim social e econômico para o qual foi criado, sob a falsa aparência da legalidade. Com isso, os autores afirmam que “a liberdade desregrada para se contratar, a autonomia da liberdade fomentando a autorregulação — com a figura do Estado à margem da relação entre as partes — acarretou numa dinâmica em que a manutenção das convenções passou a não mais ser vista e, acima de tudo, criou-se um ambiente em que o individualismo é a base de todos os enlaces, transformando a ideia da função social do contrato em um mero devaneio ou em uma frase feita para ensaios e palestras.

E, concluem que a não aplicabilidade da Teoria da Imprevisão nos contratos tornou-se mais suave o princípio da autonomia da vontade – a liberdade de contratar, retirando o pacta sunt servanda (cumpra-se o contrato) de sua intangibilidade (abstração), fazendo com que a doutrina, a jurisprudência e o legislador do Código Civil de 2002 passassem a dispensar tratamento especial à pessoa — sua dignidade e socialidade em lugar da vontade soberana individualista que imperava.

Que, o estudo realizado para a confecção do citado artigo, englobou as alterações contratuais causadas pela mudança das economias mundiais (Pandemia COVID-19), o que, consequentemente, dificultou a estabilidade dos negócios jurídicos pactuados, visto a não previsão contratual para o período vivenciado. Por isso, entendem necessário a observância da esfera judiciária, baseando-se nos princípios basilares do ordenamento jurídico, utilizando como analogia casos concretos, em que são presentes tais arguições, visto se tratar de consequências que vão além do simples papel (o contrato).

Dra. Sandra Bandeira – Assessora Jurídica do Secovi/RS

 

 

 

 

 

 

23 jun, 21

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