AS RELAÇÕES CONTRATUAIS EM MOMENTOS DE CRISE COMO A DA COVID-19

Por: Tiago Camargo Alegretti, advogado, especialista em Direito Empresarial pela PUCRS e mestrando em Direito pela Unisinos, e Demétrio Beck da Silva Giannakos, advogado, mestre e doutorando em Direito pela Unisinos

 

Relações contratuais entre particulares facilitam a divisão de trabalho e de especializações, que são as chaves para aumentar a qualidade e quantidade dos produtos [1]. O principal conceito econômico do contrato é justamente o de ser uma ferramenta que ajuda as partes a maximizar o seu bem-estar [2].


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Em um sistema capitalista, que reconhece como seu ponto-chave o princípio da liberdade da iniciativa privada, os operadores econômicos (partes do contrato) são livres para dar aos seus contratos os conteúdos concretos que considerem mais desejáveis, bem como alterá-los posteriormente para readequá-los aos diferentes e, muitas vezes, imprevisíveis cenários econômicos e sociais que estejam vivenciando. O regulamento contratual resulta, assim, pela vontade concorde das partes, constituindo o ponto de confluência e de equilíbrio entre os interesses – normalmente contrapostos [3].

No entanto, algumas medidas adotadas em momentos de crise, em especial pelos poderes governamentais, podem criar brechas jurídicas, de modo que algumas relações contratuais podem sofrer pressões externas ao contrato para sua alteração ou, até mesmo, a sua rescisão abrupta. Frisa-se tratar de alterações não ocorridas por boa-fé ou vontade genuína das partes, mas por um ato de oportunismo em que uma delas, aproveitando-se de determinada situação, obtém vantagem ilícita em exercício abusivo de direitos, definição de “desequilíbrio no exercício jurídico” trazida por Gagliano [4].

Importa ressaltar a diferenciação entre o referido oportunismo, expressão ora utilizada no sentido pejorativo para designar o ato de tirar proveito de alguma situação para obter uma vantagem não digna, e oportunidade, que é o ato legítimo de se revisar contratos em situações especiais para se alcançar o equilíbrio econômico e ajustar termos em virtude de novas realidades. Esta última, aliás, prática recomendável em momentos de crise, inclusive para readequação de algumas relações não tratadas em outros momentos por mera comodidade.

O tema tratado tornou-se pujante em âmbito global desde que, no dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a COVID-19 como pandemia.

Isso porque, logo em seguida, boa parte dos estados e municípios brasileiros expediu decretos restringindo parcial ou totalmente a abertura de estabelecimentos comerciais e de atividades consideradas não essenciais. Tais medidas foram tomadas no sentido de que a melhor alternativa seria restringir o contato e aglomeração de pessoas.

No entanto, como essa situação afeta os contratos paritários de longa duração? Por exemplo, no caso dos contratos de locação comerciais, tais restrições podem afetar os termos contratados entre as partes?

A empresa Iguatemi, por exemplo, suspendeu a cobrança de aluguel do mês de março para seus locatários [5].

Muito se tem sustentado a aplicação do artigo 393 do Código Civil, em que a presente situação seria enquadrada como caso fortuito ou força maior. Outros autores mencionam a aplicação da teoria da imprevisão, colacionada nos artigos 478 a 480, também do Código Civil, entretanto, tais teorias não são automaticamente aplicáveis a todos os casos e contratos.

Nesta linha, conforme destaca Luciano Timm, em artigo relacionado à crise de 2008, “de um lado, o grande princípio mestre do direito contratual – sobretudo no âmbito empresarial – é o de que os contratos devem ser cumpridos, tal como avençados entre as partes (…) de outro lado, existe também o princípio subsidiário àquele, de que alterações extraordinárias e imprevistas pelas partes podem ensejar o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos” [6].

Jorge Cesa, em recente artigo publicado, ao analisar o possível enquadramento do coronavírus aos casos de caso fortuito ou força maior, dispõe que, em realidade, o caso concreto do contrato a ser analisado que, efetivamente, definirá a sua aplicação ou não [7].

A partir desse panorama, há que se analisar o oportunismo que tais notícias podem acabar resultando.

Nos parece que a melhor forma de analisar este fenômeno é por meio da teoria econômica dos contratos, visto que esta tem por base um estudo mais focado no comportamento dos indivíduos e das normas do que na reflexão sobre o sistema jurídico. E, para esta teoria, é necessário reconhecer a função social dos contratos no mercado [8].

Assim, se para o mercado é interessante que haja continuidade contratual e manutenção da segurança jurídica das relações, comportamentos contrários a esta intenção, sobretudo carregados de influências externas e dotados de tendências abusivas, certamente não serão bem recebidos.

Do ponto de vista econômico, no momento em que os veículos de comunicação transmitem a possibilidade de repactuação dos contratos de locação comerciais, por exemplo, incentivam que boa parte dos locatários busquem este benefício, mesmo que a sua situação fática específica não exija tal benefício. Do ponto de vista econômico, tais notícias dificultam justamente a cooperação pré-existente entre os envolvidos.

A comunicação mútua entre as partes, nessa perspectiva, pode ser o diferencial entre a frustração total do contrato e a cooperação eficiente.

Os mercados e alguns restaurantes, por exemplo, que permanecem em funcionamento mediante o serviço de delivery, atendendo todos os seus consumidores, farmácias que tenham tido até mesmo um aumento na receita decorrente da busca por de prevenção, entre outros, são exemplos de estabelecimentos que podem continuar honrando seus compromissos.

Ou seja, a divulgação dessas informações, disseminando a possibilidade de isenção ou redução dos valores locatícios por determinado prazo, sem a análise meticulosa do caso específico, gerará uma redistribuição de ônus e obrigações por meio de remédios, como a revisão, a resolução contratual ou a decretação de invalidade e/ou ineficácia de disposições contratuais, caso procedida de forma deveras idiossincrática. Tais possibilidades podem gerar, além do comportamento oportunista mencionado, o desincentivo ao cumprimento das obrigações.

No que tange ao comportamento oportunista, Oliver Williamson define-o utilizando uma célebre formulação: “Por oportunismo, quer dizer interesse próprio com dolo” (tradução nossa) [9]. O mesmo autor, ao conceituar o oportunismo, dispõe: “De maneira mais geral, o oportunismo se refere à divulgação incompleta ou distorcida de informações, especialmente a esforços calculados para enganar, distorcer, disfarçar, ofuscar ou confundir” [10] (tradução nossa) [11].

Nas palavras de Richard H. Thaler, “a premissa central da teoria econômica é que as pessoas escolhem por otimização” [12]. Ou seja, buscam o que for melhor para elas, dentro das possibilidades.

Sob essa perspectiva, as partes contratantes são capazes de comparar os custos e benefícios financeiros esperados entre diferentes e alternativos termos de um contrato, e basear suas preferências nos termos que maximizam as suas utilidades [13].

Assim, em um momento de dificuldades inquestionáveis, somando-se às informações de que a revisão ou rescisão contratual são alternativas viáveis, mesmo o locatário que não tenha sido prejudicado ou que possua uma condição diferenciada será tentado, racionalmente, a pleitear, no mínio, uma revisão contratual.

Entretanto, da mesma forma como existem locatários das mais diversas situações jurídicas e financeiras, existem locadores igualmente diversos, que também precisam ter sua situação analisada casuisticamente. Podemos nos deparar com uma situação específica em que o locatário possua uma condição financeira muito mais privilegiada do que o próprio locador, por exemplo.

Nessas situações, como será analisado o pedido de revisão ou rescisão? A situação econômico-financeira do locador é igualmente relevante?

Entende-se que sim.

Dessa forma, caberá, em cada caso concreto, ao locatário comprovar em seu pedido com o efetivo dano causado pela pandemia e não que os casos sejam analisados de forma genérica, sob pena de causar prejuízos irreparáveis ao mercado imobiliário.

Além disso, deverão compor esta análise os efeitos econômicos de cada decisão para que comportamentos não aceitos pelo mercado não obtenham salvaguarda jurídica.

Por fim, a situação econômico-financeira do locador também precisa ser analisada sob o mesmo prisma e ser levada em consideração pelas partes e pelo julgador, sob pena de ocorrer uma redistribuição de custos de transação equivocada e prematura.

Ou seja, não podemos dar respostas antes das perguntas. Precisamos analisar de forma criteriosa o caso concreto para, assim, determinar se a readequação da relação contratual é necessária, lícita e economicamente viável.

[1] ZAMIR, Eyal; TEICHMAN, Doron. Behavioral law and economics. New York: Oxford University Press, 2018, p. 237.

[2] ZAMIR, Eyal; TEICHMAN, Doron. Behavioral law and economics. New York: Oxford University Press, 2018, p. 238.

[3] ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 2009, p. 128.

[4] GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume 4: Contratos, 2019.

[5] https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/03/25/iguatemi-suspende-aluguel-de-marco-para-todos-os-lojistas.htm acessado no dia 31 de março de 2020.

[6] TIMM, Luciano Benetti. Artigos e ensaios de direito e economia. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2018, p. 35.

[7] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/caso-fortuito-e-forca-maior-as-questoes-em-torno-dos-conceitos-20032020 acessado no dia 31 de março de 2020.

[8] TIMM, Luciano Benetti. Artigos e ensaios de direito e economia. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2018, p. 49.

[9] “By opportunism I mean self-interest seeking with guile

[10] “More generally, opportunism refers to the incomplete or distorted disclosure of information, especially to calculated efforts to mislead, distort, disguise, obfuscate, or otherwise confuse”

[11] WILLIAMSON, Oliver E. The Economic Institutions of Capitalism: firms, markets, relational contracting. The Free Press, a Division of Macmillan Inc, 1985, p. 47.

[12] THALER, Richard H. Misbehaving. 1 ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019, p. 19.

[13] SANTOLM, Cesar. Bahavioral law and economics e a teoria dos contratos. RJLB, ano 1, n. 3, 2015.

 

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 25 de abril de 2020

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